Comendo vacas sagradas


"Vacas sagradas" é um termo que representam regras tão amplamente usadas que ninguém se dá conta de que elas podem não ser imprescindíveis. São tão divulgadas, que imaginar como seria um sistema de RPG sem elas acaba ficando estranho. Inclusive, quando algum sistema "come" essas vacas sagradas, a primeira coisa que surge são críticas à nova forma como as coisas são feitas.

Apesar de muitas vezes serem, realmente, úteis, o vaca-sagradismo prejudica a evolução do RPG e experimentações novas de regras, sejam na forma de combinações inesperadas, mudanças sutis, ou guinadas mais radicais.

Os RPGs indies, geralmente, são os primeiros a ignorarem regras pré-estabelecidas. Alguns, como freemarket, têm regras tão diferentes que fica até difícil enquadrar em qualquer gênero. E os jogos indie têm que agradar o público de alguma forma, e a única maneira de se sobressair é fazendo diferente. Porém, devido à falta de recursos, ou talvez de experiência, geralmente esses jogos acabam não se preocupando tanto com acabamento ou equilíbrio, e deixam isso a cargo dos jogadores.

M&M, hoje, é um sistema bem comercial e bastante conhecido - não é à toa que a DC fez contrato com a Green Ronin, ou que seu slogan seja "O Maior RPG de super-heróis do mundo!" - mas ele começou a pequenos passos, como "mais um" sistema OGL. Porém, M&M tinha necessidades que o sistema d20, sozinho, não poderia satisfazer. Ele também tinha um mercado que precisava de algo diferente - como o mercado dos RPGs independentes. Então, ele não podia ceder a qualquer vaca sagrada, e fez diferente.

A primeira coisa que se nota em M&M, com relação a D&D, é que ele não usa classes ou níveis. Isso não se enquadra exatamente como uma vaca sagrada, já que há uma porção de sistemas que usam pontos, tais como GURPS e Mundo das Trevas. Todavia, dentre tantos sistemas OGL, é interessante notar que ele é o único a usar este sistema de criação de personagens; mesmo OGLs genéricos, como o True 20 (também da Green Ronin), usam classes.

Outra característica que salta aos olhos é a completa ausência de regras de Pontos de Vida. M&M não foi o pioneiro nisso: só entre os OGL, True 20 e Blue Rose já se utilizavam de regras de vitalidade semelhantes, e alguns sistemas mais antigos também. A regra dos Pontos de Vida é uma das maiores vacas sagradas do RPG, é difícil contar os dedos de uma mão quantos fogem dessa regra. Alguns sistemas usam "Vitalidade", ou "Pontos Heróicos" (no caso de Daemon), mas são apenas Pontos de Vida maquiados.

Mesmo abandonando vacas sagradas tão "importantes", a 2ª Edição de M&M conseguia manter um equilíbrio muito bom, e era ágil e satisfatória. Ainda assim, a Green Ronin quis mais...

Na 3ª Edição de M&M, mais vacas sagradas foram abandonadas: os valores das habilidades, que eram absolutamente inúteis em jogo*; uma porção de feitos, que pareciam apenas querer manter as tradições do D&D/OGL; regras como Agarrar, Ações Completas, a lista de perícias, a lista de habilidades...

Basicamente, todo o OGL foi jogado fora. Tudo que se manteve foi a base mínima: role 1d20, some a alguns modificadores, compare a uma CD. Ainda assim, essa base teve sua própria carga de alteração, com o acréscimo dos graus de sucesso ou de falha. O que ocorreu com o sistema? Evoluiu.

Acredito que M&M 3E poderia ter saído melhor. Presence poderia ter ficado mais equilibrado em relação aos outros atributos, ataques à distância poderiam receber penalidade em corpo-a-corpo (por razões de equilíbrio), Mimic (como explicarei no próximo post) deveria ser mais barato. Ainda assim, há de se reconhecer que o novo sistema é um tremendo salto em relação à 2ª edição. E grande parte desse salto se deve ao abandono de tantas vacas sagradas que permeavam o sistema.

Outros sistemas também poderiam fazer o mesmo, e os jogadores poderiam aprender que isso pode vir a ser uma evolução, e pararem de querer retroceder ao tal do "old-school". D&D 4ª Edição mudou muita coisa em relação à 3ª, e muito do que eu vejo ser reclamado é apenas "vaca-sagradismo" (NPCs e monstros não seguindo as mesmas regras dos jogadores, multiclasse menos exagerada, "poderes" para as classes marciais...). Por que insistir nessas regras, que se provaram falhas? Por que em vez de tentar remendá-las várias e várias vezes, não podemos apenas substituí-las?



*Certa vez, ao divulgar a minha review de DCA no orkut, um dos membros da comunidade comentou no tópico que os valores das habilidades eram úteis, sim. Primeiro, porque ele podia rolar as habilidades aleatoriamente, usando 4d6 e ignorando o menor. Segundo, porque ele poderia fazer uma comparação direta, como numa queda de braço.

O que eu não entendo é por que ele iria querer criar um personagem com habilidades aleatórias num jogo de supers (que não tem uma variação tão comum quanto 3-18), ainda mais considerando que o d6 não é um dado usado no sistema. Vi isso apenas como apego a algo absolutamente inútil, e que poderia, sim, ser usado (rola os 4d6, ignora o menor, e considera só o modificador. É difícil imaginar isso?).

Segundo, quando eu perguntei para ele quantas vezes ele usou a comparação direta em jogo, ele deu o exemplo da queda de braço. Sério, leitores: quantas vezes algum de vocês, durante uma partida, já usou uma queda de braço em jogo? É um ótimo exemplo para explicar como o sistema funciona, porém eu não vejo por que usá-lo na prática.

Além disso, o que impede de comparar os novos valores? Força 10 (30, na 2E) continua maior que Força 9 (28, na 2E). A única diferença é que agora não existe um valor que só serve para essa comparação, e que ninguém usava na prática: eu não desperdiçaria um ponto deixando minha Força em 29, sabendo que eu poderia usar esse mesmo ponto para comprar um feito, um poder simples, ou 4 graduações numa perícia, apenas para poder vencer na queda de braço alguém que tivesse Força 28.

Comentários

  1. Gostei bastante do post. Eu mesmo, tinha diversas regras do D&D como vacas sagradas, e somente com o M&M pude me desapegar. Também já discuti com alguns jogadores sobre os valores de habilidades, uma vez que no sistema D20 e OGL eles são insignificantes, uma vez que o bônus é o que importa.

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  2. Em D&D, a utilidade dos valores de habilidade é maior, já que é ele que aumenta no decorrer dos níveis, em vez dos modificadores. Isso faz sentido para um sistema de classes e níveis.

    Mas... para um sistema de pontos, como M&M, é algo absolutamente descartável.

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